quarta-feira, janeiro 12, 2011

Afanassief



Quando, em 2006, Valdesir Machado (BRA), Gabriel Otero (ARG) e eu, Edemilson Padilha, atingimos o cume do Cerro Fitz Roy pela via Afanassief, na Patagônia Argentina, não poderíamos imaginar que 5 anos depois estaríamos tristes por levar a termo tal empreitada.
Jean Afanassief foi o líder da equipe francesa que abriu esse lindo itinerário em 1979. Até 2006 ele ainda não havia sido repetido. Nós tivemos a grande honra de passar por ali no final de janeiro daquele ano, recorrendo os seus 2300 metros de granito. E o fizemos em estilo alpino, ou seja, levando tudo conosco. Duas cordas de 60 metros de 8mm, 9 friends, 2 jogos de stoppers e 15 costuras eram nosso equipamento de escalada. De El Chaltén partimos com nossas mochilas de 40 litros de volume cheias de coisas penduradas. Tudo começou meio mal: partimos com clima bem ruim, chegando à base encontramos o cadáver de um escalador e uma equipe de americanos que tentaria a mesma via; no outro dia eles saíram na frente e nos atrasaram um pouco, pois estavam mais pesados. Depois as coisas começaram a melhorar e na metade do dia os americanos decidiram parar para bivacar, pois o clima estava estranho. Nós seguimos, pois a previsão dizia que no outro dia haveria céu azul. Não sei precisar quantos metros escalamos naquele dia, só sei que foi até não aguentarmos mais, até nossos corpos terem de parar para se recuperarem. No outro dia o clima amanheceu pior ainda, mas naquele ponto teríamos de “desistir por cima”. Escalamos revezando a ponta da corda e conseguimos pisar o cume do Cerro Fitz Roy às 19 horas mais ou menos. A emoção e a preocupação tomaram conta de nós. Teríamos de descer pelo outro lado da montanha, o que sabíamos que nos custaria caro, pois não conhecíamos toda a rota de descida. Anoiteceu e nos perdemos nos rapéis, nossas cordas enroscaram em uma das “puxadas” e nos vimos passando a noite sentados em um pedacinho de gelo naquela imensidão. Sentimo-nos ínfimos. Esperamos algumas horas até amanhecer. A luz do sol nos alentou e pudemos recuperar nossa auto-estima. Encontramos a rota de descida e pisamos El Chaltén no final daquele longo dia. Até hoje ainda recordo com felicidade daqueles momentos em que pudemos compartilhar com os amigos a nossa façanha.
Todavia, há uns dias, quando recebi a notícia do acontecido com o amigo Bernardo, senti muita tristeza. Há 20 anos escalo montanhas e já perdi gente amiga e gente conhecida em atividades de montanha. Mas quando é tão próximo e em uma via que já escalamos, perdemos um pouco o chão. E também pela figura sensacional que este brother sempre foi. Não preciso engrossar a lista das centenas de adjetivos que todos expressaram por ele nesses últimos dias. Espero que seu espírito encontre a paz. Espero também que a Kika possa encontrar a paz, pois tomar aquela decisão não deve ter sido nada fácil. E também não deve ter sido nada fácil encontrar uma maneira de descer por aquela face. Para nós, em 3 “marmanjos” já foi duríssimo. O que dizer então de uma pessoa sozinha com quilômetros de granito e gelo por todos os lados, centenas e centenas de metros de rapel, gretas para atravessar, pedreiros para descer e tudo isso sem ter com quem dividir a carga enorme de ter tido que deixar para trás um amigo e companheiro de escalada.
O que podemos depreender dessa fatalidade é que ela realmente foi uma fatalidade. Tínhamos dois escaladores competentes, realizando uma escalada para a qual estavam bem preparados e aconteceu uma falha no ponto de rapel. Nesse estilo de escalada as ancoragens de rapel não são 100% confiáveis. Há que se testar tudo e armar pontos de rapel, pois as vias não estão preparadas com 2 grampos, como as rotas de escalada esportiva. Muitas vezes laçamos um bico de pedra com uma fita e passamos a corda diretamente nela. Pois não há como equipar uma via dessas, num lugar desses, com paradas perfeitas. Seria necessário um “caminhão” de equipamentos, e, no momento, tudo de que dispomos é do material que estamos usando para escalar a via. Em 1995 ajudei no resgate de um americano que sofreu o mesmo tipo de acidente, uma fita velha se rompeu.
E o que podemos fazer para evitar acidentes? Acredito que a coisa mais importante que podemos fazer se chama autoconhecimento. Sabendo nossos limites podemos encontrar desafios que sejam compatíveis com nosso nível. Depois vem a estratégia para escalar cada rota e em cada tipo de montanha ou de clima. Na Patagônia a estratégia é sempre escalar rápido e leve, porque o clima é horrível. Outro ponto importante é a pesquisa. Sempre recebo e-mails pedindo informações sobre determinadas montanhas e muitas das vezes a pessoa nem procurou no google as informações básicas. Pesquisar tudo sobre o local é imprescindível. Falar com quem já fez a via, levar os equipamentos adequados, a água necessária, a comida certa, roupa certa...
Tudo isso minimiza as possibilidades de acidentes, mas não os reduz a zero. Sempre existem fatores sobre os quais não temos controle: uma pedra, um desprendimento de gelo, ou uma ancoragem que se solta, como no caso citado acima. Porém, temos a obrigação de cuidar de todos os detalhes e nunca sermos negligentes com a segurança, pois um resgate em montanha é arriscadíssimo para todos os envolvidos. Devemos ser paranóicos com a segurança e não economizar esforços para permanecermos praticando o esporte de que tanto gostamos. Façamos isso em homenagem aos que nos amam e em homenagem aos que foram antes da gente e que também partilhavam dos mesmos ideais, como o Bernardo Collares, a Roberta Nunes, o Vitor Negretti, o Daniel Valentin...

quinta-feira, janeiro 06, 2011

Bernardo Collares morre no Fitz Roy



Fotos: Frase do Bernardo, retirada do orkut. Bernardo Collares.

Como já está rolando na internet muitas informações desencontradas sobre a morte de nosso grande amigo e grande personagem do montanhismo brasileiro, Bernardo Collares, gostaria de colocar aqui o texto explicativo do André Ilha. Este elucida alguns pontos a fim de evitar o falatório que se vê nesses casos em que há mortes no meio do montanhismo.

O Bernardo era um escalador carioca muito experiente e sua parceira de escalada Kika Bradford também. Tentaram a via Afanassief, no Cerro Fitz Roy, via enorme, mais de 2000m de extensão, escalada poucas vezes até hoje. Não era a primeira vez que a experimentavam, pois ano passado o Bernardo esteve por lá e já havia escalado um bom tanto da via.

Segue texto de André Ilha, escalador carioca e amigo dos dois escaladores envolvidos nesse trágico acidente:

Oi pessoal,

Falei longamente com a Kika há pouco (fisicamente, ela está bem, mas está arrasada), que me descreveu melhor os detalhes, mas não há nada muito diferente do que já foi divulgado, exceto pelo fato de que eles NÃO atingiram o cume do Fitz pela via Afanassief, embora tenham chegado muito próximo, e o acidente aconteceu logo no primeiro rapel - a ancoragem saiu, ou se rompeu ou a pedra se partiu, isso acho que nunca se saberá ao certo. A Kika desceu primeiro, nada aconteceu, e enquanto armava a segunda ancoragem o Bernardo voou; ela pegou a corda no reflexo, mas não teria conseguido segurar, claro, se a corda também não tivesse passado por acaso por trás de um bico de pedra. O resto ela própria poderá dar mais detalhes no momento possível.

Mas o importante agora é o seguinte: a imprensa, gostemos ou não, É assim, aqui e em qualquer lugar no mundo, pois ela é voltada para a opinião pública e a opinião pública quer sensacionalismo. Ninguém para na rua para ver um carro estacionando corretamente, mas sai correndo para ver quando há uma batida, por menor que seja.

Como vocês podem recordar muito bem, nas mortes do Mozart no Aconcágua, do Vitor Negreti no Everest, ou daquele cara cujo nome não me recordo na África, a imprensa deu um destaque absurdo, e a pior coisa que poderia acontecer agora seria deixar a coisa correr solta, publicarem ou falarem barbaridades e denegrir a imagem do esporte e dos nossos amigos - particularmente crucificarem a Kika por não ter permanecido no Fitz para morrer junto com o Bernardo e não fazer a única coisa lógica e racional possível que era descer para tentar um resgate de helicóptero, a única chance que ele teria de sobreviver, mas não teve. E, acreditem, só uma pessoa MUITO experiente e determinada como ela conseguiria sobreviver à inacreditável descida sozinha, seguida de travessia da geleira, com um bivaque ao relento sem saco de dormir, debaixo de neve o tempo todo. Foram mais de 50 rapéis, com a corda prendendo o tempo todo, e ela chegou na base com um pedaço de 17 metros e outro pouco maior das duas cordas originais de 60 metros...

Então, o papel de TODOS nós é contribuir para que a realidade da escalada em locais como a Patagônia seja mostrada com exatidão - já houve diversas outras mortes por lá nesta temporada - para que não venha mais uma bateria de projetos de lei estapafúrdios por aí, sendo que agora não temos mais o Bernardo para lutar contra eles...

Eu estou sendo caçado dia e noite por jornalistas de tudo quanto é órgão de imprensa para dar mais detalhes e, após falar previamente com as duas famílias, decidi atender a todos os que for possível (lembrando-os sempre de procurarem os diretores da FEMERJ, como Júlio e Bugim, que também já falaram com alguns deles) para esclarecer da melhor foma possível a situação. Até meia noite ligaram lá para casa, e hoje não consegui trabalhar nada... Mas vale a pena todo o esforço agora, pois além de as duas famílias serem um pouco poupadas assim, a gente consegue evitar manchetes e conteúdos muito ruins, cheios de coisas absurdas que gerarão ainda mais especulação infundada.

Por fim, lamentavelmente a situação do nosso amigo era diferente da do Joe Simpson ou de outros casos em que houve sobreviventes em condições miraculosas, pois as lesões dele foram terríveis. Esse é o grande diferencial.

Abraços e beijos,

André